A inclusão de cláusula de renúncia à proteção da essencialidade de bens na recuperação judicial: entre a preservação da empresa e o pacta sunt servanda
Rafael de Albuquerque Rodrigues Queiroz
É notório que um dos princípios que regem as relações contratuais privadas no Direito Civil brasileiro é o pacta sunt servanda, expressão latina que significa, em síntese, que os contratos devem ser cumpridos. Assim, os negócios jurídicos têm força obrigatória e eficácia vinculante entre as partes.
No âmbito da recuperação judicial, entretanto, o sistema jurídico consagra outro princípio fundamental: o da preservação da empresa, consubstanciado no art. 47 da Lei nº 11.101/2005. Nos termos desse princípio, a recuperação judicial deve ser conduzida de forma a viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, permitindo a manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a função social da empresa e o estímulo à atividade econômica.
Nos últimos anos, a discussão sobre a renúncia à proteção da essencialidade de bens nos contratos empresariais tem ganhado destaque nos processos de recuperação judicial. O tema desperta atenção, porque põe em confronto direto dois pilares do ordenamento jurídico: de um lado, a autonomia privada e a força obrigatória dos contratos; de outro, a preservação da empresa e sua função social. Trata-se, portanto, de debate de alta relevância prática, que tem desafiado a jurisprudência e impactado a relação entre credores e devedores em crise.
Em termos gerais, o deferimento da recuperação judicial acarreta a suspensão das execuções e a proibição de medidas constritivas sobre os bens do devedor relacionadas a créditos concursais. Essa proteção legal é excepcionada nas hipóteses taxativamente previstas na Lei nº 11.101/2005, nas quais se incluem os bens alienados fiduciariamente (art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005). O art. 6º, § 7º-A da mesma lei, reforça essa regra ao estabelecer que o stay period não se aplica aos créditos garantidos por alienação fiduciária.
Todavia, a própria legislação prevê ressalva expressa à possibilidade de excussão de garantias fiduciárias: a proteção dos bens que forem essenciais à atividade do devedor. Em síntese, considera-se essencial o ativo indispensável à continuidade da atividade empresarial, o que o torna insuscetível de retomada, mesmo que objeto de garantia fiduciária. Essa proteção visa justamente assegurar a manutenção da operação da recuperanda e a efetividade do plano de soerguimento, sendo expressão direta do princípio da preservação da empresa.
Em alguns contratos empresariais, contudo, especialmente em instrumentos de financiamento garantidos por alienação fiduciária, tem-se observado a inclusão de cláusulas de renúncia à proteção da essencialidade de bens, muitas vezes em contratos bancários de adesão. Por meio delas, a devedora reconhece, de forma antecipada, que determinados ativos não serão considerados essenciais em eventual processo de recuperação judicial, permitindo ao credor a retomada imediata em caso de inadimplemento. Trata-se, geralmente, de estratégia utilizada pelas instituições financeiras para evitar o sistema protetivo da Lei nº 11.101/2005.
A controvérsia reside, justamente, em saber se é válida a renúncia prévia a essa proteção legal. Pode uma sociedade empresária, antes ou durante a recuperação, renunciar à prerrogativa de ver reconhecida a essencialidade de seus bens? E, em caso afirmativo, até que ponto essa renúncia é eficaz diante das normas de ordem pública que estruturam o instituto da recuperação judicial?
De um lado, sustenta-se que a autonomia da vontade e o pacta sunt servanda devem prevalecer: uma vez pactuada a cláusula de renúncia, não caberia ao judiciário afastar sua eficácia, sob pena de violar a segurança jurídica e desestimular o crédito. Para essa corrente, trata-se de manifestação legítima da liberdade contratual entre partes empresárias, que deve ser preservada inclusive em cenários de crise.
De outro lado, parte significativa da jurisprudência entende que tais cláusulas não podem prevalecer diante do interesse público subjacente à preservação da empresa, princípio basilar da Lei nº 11.101/2005. Nessa perspectiva, a função social da empresa e o caráter protetivo do processo recuperacional devem se sobrepor a convenções privadas que possam inviabilizar a continuidade da atividade produtiva. Assim, caberia ao juiz, caso a caso, avaliar a essencialidade dos bens, independentemente de eventual renúncia contratual.
A jurisprudência recente de Tribunais Estaduais, como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJSP”) e o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (“TJMG”), ainda não consolidou entendimento uniforme, mas já revela tendências relevantes. Na maior parte dos precedentes, as cortes têm reconhecido que as cláusulas de renúncia antecipada a direitos assegurados por normas cogentes são nulas de pleno direito, por se tratar de matérias de ordem pública ligadas à preservação da empresa. Confira-se o entendimento do TJSP: “Prova da essencialidade do imóvel que envolve parte relevante da produção agrícola da recuperanda. Cláusula de renúncia da essencialidade do bem. Nulidade de pleno direito. Proteção que decorre de lei. Matéria de ordem pública”. (1)
No mesmo sentido o TJMG:
A cláusula contratual que declara, de forma unilateral e padronizada, a não essencialidade dos bens dados em garantia, não prevalece diante de prova documental e manifestação da Administradora Judicial atestando a indispensabilidade dos imóveis rurais à manutenção das atividades produtivas do grupo empresarial em soerguimento.
– Cláusulas de renúncia antecipada a direitos assegurados por normas cogentes são nulas de pleno direito, especialmente quando inseridas em contrato de adesão e incompatíveis com os princípios da função social do contrato (art. 421, do CC), da boa-fé objetiva (art. 113, § 1º, III, do CC) e da preservação da empresa (art. 47, da LRF). (2)
O voto vencido nesse mesmo julgamento, no entanto, ressalta que a declaração expressa de não essencialidade pode ser válida e eficaz, sobretudo quando emanada de produtores rurais em Cédulas de Produto Rural (“CPR”), com fundamento no art. 5º, § 1º, da Lei nº 8.929/1994, e na ausência de vícios de consentimento. Essa posição, embora minoritária, reforça a necessidade de ponderação entre a preservação da empresa e a segurança jurídica dos contratos.
No cenário atual, prevalece a tendência jurisprudencial de reconhecer a nulidade das cláusulas de renúncia à proteção da essencialidade, especialmente quando presentes elementos de adesividade contratual e impacto direto sobre a continuidade da atividade empresarial. O movimento reflete a compreensão de que a função social da empresa, enquanto valor de ordem pública, não pode ser afastada por convenções privadas.
Do ponto de vista prático, o debate traz implicações significativas. Para as sociedades empresárias em recuperação, é recomendável atenção redobrada à redação de cláusulas contratuais que possam implicar renúncia a direitos essenciais em momentos de crise, bem como atuação transparente na demonstração da indispensabilidade dos bens ao juízo recuperacional. Para os credores, por sua vez, é importante reconhecer que, em contextos de insolvência, a aplicação estrita das garantias pode sofrer mitigação judicial em nome da preservação da empresa e da coletividade de credores.
O tema permanece em evolução e demanda interpretação prudente e contextualizada. A consolidação da jurisprudência sobre a renúncia à proteção da essencialidade de bens será decisiva para o aperfeiçoamento do sistema recuperacional brasileiro – especialmente neste momento em que a Lei de Recuperação e Falências completou pouco mais de duas décadas de vigência, reafirmando-se como instrumento fundamental de reorganização produtiva e de preservação da atividade econômica.
Rafael de Albuquerque Rodrigues Queiroz
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) TJSP; Agravo de Instrumento 2067187-54.2024.8.26.0000; Relator (a): J.B. Paula Lima; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 14/11/2024; Data de Registro: 14/11/2024.
(2) TJMG; Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.24.301636-7/003, Relator(a): Des.(a) Adriano de Mesquita Carneiro, 21ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 04/06/2025, publicação da súmula em 05/06/2025.