Corte reafirma necessidade de equilibrar o direito dos herdeiros com a proteção à intimidade e aos direitos da personalidade do falecido
Débora Melillo de Almeida Gomes
A progressiva digitalização da vida humana, com o desenvolvimento e a manutenção de relações interpessoais, contratos, bens e identidades para o ambiente virtual, trouxe novos desafios ao direito sucessório. O patrimônio do indivíduo, antes essencialmente material, passou a abranger também ativos e dados digitais, como contas em plataformas, arquivos em nuvem, criptomoedas, perfis em redes sociais, licenças de softwares e até mesmo conteúdo produzido por inteligência artificial.
A dualidade existente, então, entre o valor econômico e o conteúdo existencial dos bens digitais tem colocado o tema no centro de uma tensão clássica: a conciliação entre o direito sucessório e a tutela da intimidade. A modificação causada pela era digital ensejou, inclusive, a necessidade de reinterpretação do princípio de saisine, positivado no art. 1.784, do Código Civil, segundo o qual a herança se transmite automaticamente aos herdeiros, sem, contudo, distinguir entre bens materiais e digitais. Essa lacuna reflete o contexto histórico de elaboração do Código, anterior à consolidação da vida digital.
Segundo Bruno Zampier Lacerda (1), os bens digitais podem ser compreendidos como “uma categoria de bens incorpóreos, progressivamente inseridos na internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que trazem alguma utilidade àquele, tenham ou não conteúdo econômico”.
A doutrina, por sua vez, como apontam Livia Teixeira Leal e Gabriel Honorato (2) classifica os bens digitais em patrimoniais, existenciais e híbridos:
a doutrina costuma dividir o patrimônio digital da seguinte forma: (i) bens digitais patrimoniais, aqueles conteúdos que gozam de valor econômico, como milhas aéreas, bibliotecas musicais virtuais, acessórios de vídeo game e outros; (ii) bens digitais personalíssimos, que compreendem aquela parte do acervo dotado de valor existencial, seja do titular, seja de terceiros com os quais se envolveu, a exemplo de correios eletrônicos, redes sociais como WhatsApp e o Facebook, e outros; (iii) por fim, os bens digitais híbridos, cujo núcleo seja abrangido tanto por conteúdo personalíssimo como patrimonial, como contas do YouTube de pessoas públicas que são monetizadas pela elevada quantidade de acessos.
Na ausência de legislação específica, cabe ao Poder Judiciário definir como e em que medida os bens digitais podem ser acessados e partilhados após a morte do titular, tarefa que demanda olhar simultaneamente técnico e humanista.
Foi nesse contexto, que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), ao julgar o REsp 2.124.424/SP (3), firmou o entendimento de que o acesso aos bens digitais protegidos por senha deve ocorrer mediante incidente processual próprio, apensado ao inventário. A relatora, Ministra Nancy Andrighi, destacou a necessidade de conciliar dois valores constitucionais: o direito dos herdeiros à transmissão integral dos bens e o respeito aos direitos da personalidade do falecido e de terceiros.
Para compatibilizar esses princípios, a relatora propôs a criação de incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, a ser conduzido pelo juiz do inventário com o auxílio de profissional especializado, o denominado inventariante digital.
O inventariante digital atuaria de forma semelhante a um perito judicial, com a incumbência de identificar os bens digitais, classificá-los segundo sua natureza (transmissível ou intransmissível) e apresentar relatório técnico ao juízo, garantindo o sigilo e a confidencialidade das informações pessoais. Isso, porque ele tomará conhecimento de todo o conteúdo existente no aparelho do falecido e poderá ser responsabilizado civil e criminalmente por eventual violação ao segredo de justiça.
O juiz do inventário é quem fará a identificação e classificação dos bens digitais encontrados e, então, determinará o que poderá ser transmitido ou não aos herdeiros, haja vista possível violação aos direitos da personalidade do falecido ou de terceiros.
O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva apresentou voto-vista divergente, defendendo que os bens digitais devem ser submetidos à regra da sucessão universal (art. 1.784 do CC), sem necessidade de incidente processual ou figura intermediária. Para ele, o acesso dos herdeiros não implica violação à intimidade do falecido, uma vez que estes não são “terceiros estranhos” à relação jurídica originária.
Apesar de representar avanço procedimental, a criação do inventariante digital suscita questionamentos quanto à limitação de acesso dos herdeiros ao conteúdo examinado. Como apenas esse profissional teria contato direto com os arquivos, cabendo-lhe apresentar ao juízo relatório com os bens considerados transmissíveis, há risco de filtragem excessiva de informações.
A medida busca resguardar a intimidade do falecido e de terceiros, mas pode comprometer a transparência e a confiança no processo sucessório, especialmente diante da natureza híbrida de muitos bens digitais.
Permanece presente, portanto, o desafio de se equilibrar a proteção da personalidade post mortem com a efetividade do direito sucessório, evitando que o resguardo da intimidade se converta em obstáculo indevido ao exercício da herança digital.
Débora Melillo de Almeida Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) ZAMPIER LACERDA, Bruno Torquato. Bens Digitais: Em busca de um microssistema próprio. In: BROCHADO TEIXEIRA, Ana Carolina; LEAL, Lívia Teixeira (Coord.). Herança Digital. Indaiatuba/SP: Foco, 2021. p. 44.
(2) HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. Propostas para a regulação da herança digital no direito brasileiro. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (Coord.). Direito Civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 380-381.
(3) REsp nº 2.124.424/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 09/09/2025, DJe de 25/09/2025.