A fundamentação por referência à luz do Tema 1.306 dos Recursos Repetitivos do STJ
Gabrielle Aleluia e Sofia Garbarino Nogueira
A fundamentação per relationem (ou fundamentação por referência) consiste na técnica processual em que o juiz, ao prolatar decisão, adota as razões de decidir de decisões anteriores, pareceres do Ministério Público ou argumentos das partes, ao invés de desenvolver motivação autônoma. O método tem sido utilizado recorrentemente, sobretudo devido ao alto volume de processos que tramitam no sistema judiciário, e tem gerado grande debate acerca de sua compatibilidade com o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, insculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal (1).
Do ponto de vista prático, a fundamentação por referência é amplamente adotada, pois permite maior racionalidade e eficiência à atividade jurisdicional, evitando repetições desnecessárias e possibilitando que sejam proferidos atos decisórios de maneira mais ágil e coerente com análises, pareceres ou decisões anteriores.
Ocorre que o ordenamento jurídico impõe limites à adoção dessa técnica processual. O art. 489, § 1º, do Código de Processo Civil (“CPC”) (2), por exemplo, estabelece requisitos para que uma decisão seja considerada fundamentada. Ao tratar do assunto, Humberto Theodoro Júnior (3) ensina que a fundamentação per relationem não é totalmente incompatível com o referido dispositivo, mas há restrições:
É necessário, contudo, que a remissão não seja puramente genérica, devendo, de alguma forma, evidenciar os fundamentos apropriados da decisão ou parecer referido, para permitir a compreensão exata da decisão tomada no caso concreto. O que é de todo inaceitável é a decisão que, por exemplo, se resume a manter, em grau de recurso, a sentença recorrida, “por seus próprios fundamentos”. Se a parte, para recorrer está sempre obrigada a expor “as razões do pedido” de reforma ou de nulidade da decisão impugnada (CPC, art. 1.010, III; art. 1.016, III; art. 1.021, § 1º; 1.029, III; 1.043, § 4º), é óbvio que, num procedimento dialético e em contraditório, também o tribunal terá de enfrentar todos os argumentos deduzidos pelo recorrente “capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” no decisório recorrido (CPC, art. 489, § 1º, IV). O simples ato de adotar as razões da decisão recorrida ou de outra peça dos autos não cumpre os princípios do processo democrático assegurado constitucionalmente em nosso tempo.
O jurista também destaca a existência de dissídio jurisprudencial entre o Supremo Tribunal Federal (“STF”) e o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”). No entendimento do STF, inexistiria nulidade na hipótese de o acórdão adotar o parecer do Ministério Público como fundamento para sua decisão. O STJ, por sua vez, apesar de aceitar a fundamentação por referência, ressalva que a devolução da fundamentação do ato decisório à outra peça constante do processo não é suficiente, sendo necessário garantir a possibilidade de se acessar e compreender as motivações para determinada decisão.
Recentemente, ao apreciar o assunto sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.306) (4), a Corte Especial do STJ fixou duas teses sobre o uso da fundamentação per relationem:
1) A técnica da fundamentação por referência (per relationem) é permitida desde que o julgador, ao reproduzir trechos de decisão anterior, documento e/ou parecer como razões de decidir, enfrente, ainda que de forma sucinta, as novas questões relevantes para o julgamento do processo, dispensada a análise pormenorizada de cada uma das alegações ou provas.
2) A reprodução dos fundamentos da decisão agravada como razões de decidir para negar provimento ao agravo interno, na hipótese do parágrafo 3º do artigo 1.021 do Código de Processo Civil (CPC) é admitida quando a parte deixa de apresentar argumento novo e relevante a ser apreciado pelo colegiado.
De acordo com o relator do repetitivo, Ministro Luis Felipe Salomão, a doutrina especializada defende que a utilização da “fundamentação por referência exclusiva ou pura”, caracterizada pela mera remissão ou transcrição total de fundamentos constantes de outra peça processual, sem análise específica dos argumentos apresentados pelas partes, configura violação ao direito fundamental ao contraditório e ao art. 489, § 1º, do CPC.
Por outro lado, o relator consignou que a doutrina reconhece a validade da “fundamentação por referência integrativa ou moderada”, na qual a transcrição de outra peça processual é acompanhada de apreciação própria do julgador, em diálogo com os fundamentos formulados pela parte em sua impugnação.
A fundamentação per relationem torna evidente a tensão entre a eficiência processual e as garantias constitucionais. Apesar de o julgador não estar obrigado a rebater minunciosamente todos os argumentos deduzidos do processo, a deficiência na fundamentação do ato decisório configura clara afronta aos direitos à motivação das decisões judiciais, ao devido processo legal e à ampla defesa.
Portanto, o uso da técnica dentro dos limites da Constituição e do CPC pode ser ferramenta útil para a racionalização da atividade jurisdicional, mas seu uso indiscriminado viola o direito à fundamentação das decisões judiciais, exigindo cautela e coerência em sua utilização.
Gostou do tema e se interessou pelo assunto? Mais informações podem ser obtidas junto à equipe de contencioso cível do VLF Advogados.
Gabrielle Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Sofia Garbarino Nogueira
Estagiária da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
(…)
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
(2) CPC, Art. 489, § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
(3) JÚNIOR, Humberto T. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 66. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 1001. ISBN 9788530995836.
(4) STJ. Precedentes Qualificados. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1306&cod_tema_final=1306. Acesso em: 24 set. 2025.