STJ afasta a inclusão de herdeiros dos sócios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Paulo Vítor Ângelo e Victor Rocha
Em recente decisão, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), no âmbito do Recurso Especial nº 1792271/SP (1), reafirmou, por maioria de votos, o entendimento de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (“IDPJ”) não pode ser utilizado com a finalidade de responsabilizar terceiros sem vínculo societário com a sociedade executada.
O caso teve origem em execução promovida por instituição financeira contra sociedade do ramo da construção civil pertencente a grupo familiar. Diante da frustração na satisfação do crédito, a exequente requereu a instauração do IDPJ, buscando a responsabilização não apenas das sociedades integrantes do grupo e de seus sócios, mas também dos filhos do casal controlador. O pedido se fundava na alegação de que estes teriam recebido, por doação de seus pais, imóveis e valores em dinheiro, em operação que, segundo a credora, configuraria desvio patrimonial com a finalidade de “blindagem” de bens.
O juízo de primeiro grau rejeitou a defesa apresentada pelos filhos, reconhecendo a ocorrência de confusão patrimonial. Em sede recursal, o Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) manteve a constrição dos bens, mas restringiu a responsabilização exclusivamente aos ativos recebidos em doação após a constituição da obrigação exequenda.
No julgamento do recurso especial, o relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira, destacou que a desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50 do Código Civil (2) e regulamentada nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, não autoriza a responsabilização de pessoas estranhas ao quadro societário ou à administração da pessoa jurídica devedora. Na visão do relator, o acórdão recorrido, embora formalmente fundamentado na aplicação do IDPJ, na prática reconheceu a ocorrência de fraude contra credores sem observar o procedimento específico previsto em lei.
Segundo o entendimento majoritário da Quarta Turma do STJ, a eventual imputação de responsabilidade a terceiros beneficiados por atos fraudulentos deve ser buscada pelas vias próprias, como a ação pauliana (artigo 161 do Código Civil) (4) ou a alegação de fraude à execução, assegurando-se o devido processo legal e exigindo-se a comprovação de requisitos específicos, como a anterioridade da dívida, o eventus damni (evento danoso) e o consilium fraudis (intenção de fraudar). Acompanharam o relator os Ministros João Otávio de Noronha e Isabel Gallotti. Restaram vencidos, no entanto, os Ministros Marco Buzzi e Raul Araújo, para os quais seria admissível a extensão dos efeitos do IDPJ aos filhos, em razão da utilização da estrutura societária familiar para a ocultação de patrimônio.
O precedente contribui para delimitar, com maior precisão, o alcance do IDPJ. Trata-se de instrumento processual voltado a hipóteses de abuso da personalidade jurídica – como desvio de finalidade ou confusão patrimonial –, que autoriza a responsabilização pessoal de sócios e administradores, atingindo seus respectivos patrimônios para o pagamento de dívidas contraídas em nome da sociedade. Contudo, sua utilização como atalho para atingir o patrimônio de terceiros, ainda que familiares beneficiados por atos gratuitos, configura ampliação indevida do instituto, além de comprometer as garantias processuais.
Ao distinguir de forma clara o IDPJ das ações de fraude contra credores, o STJ reforça a necessidade de observância do procedimento próprio, que assegura o contraditório e a ampla defesa, além de preservar a segurança jurídica nas relações patrimoniais. O julgado assume especial relevância prática em execuções de natureza bancária, nas quais é recorrente a tentativa de direcionamento da cobrança a familiares dos devedores.
Sob a perspectiva dos credores, a decisão evidencia a importância de se avaliar criteriosamente qual instrumento processual deve ser utilizado. Havendo abuso da personalidade jurídica diretamente por sócios ou administradores, o IDPJ é o caminho adequado; mas, em casos em que se busca o atingimento do patrimônio de pessoas estranhas ao quadro social, impõe-se a propositura de ação pauliana ou a alegação de fraude à execução. A escolha inadequada da via processual pode levar não apenas à improcedência do pedido, mas também à condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais.
Para devedores e terceiros, a decisão traz, igualmente, lições práticas valiosas. Destaca-se, nesse sentido, a necessidade de se manter rigorosa separação patrimonial, com documentação idônea das operações de transferência de bens realizadas e o regular recolhimento dos tributos incidentes, a fim de mitigar o risco de alegações de fraude ou confusão patrimonial. Esse cuidado revela-se ainda mais relevante em operações de reorganização patrimonial ou planejamento sucessório, nas quais a transparência e a formalização adequada dos atos praticados revelam-se essenciais para resguardar sua validade e afastar questionamentos quanto à eventual intenção indevida de “blindagem” de bens.
Para mais informações sobre o assunto, consulte a equipe de consultoria societária do VLF Advogados.
Paulo Vítor Ângelo
Coordenador da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Victor Rocha
Advogado da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial nº 1792271/São Paulo. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201900114243&dt_publicacao=30/05/2025. Acesso em: 29 set. 2025.
(2) Código Civil. Art. 50. “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. §1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. §2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. §3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. §4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. §5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.”
(3) Código Civil. Art. 161. “A ação, nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé.”