STJ decide sobre arbitrabilidade e compensação de créditos em recuperação judicial
Fernanda Figueiredo e Maria Eduarda Boson
O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) proferiu decisão relevante envolvendo a relação entre arbitragem e recuperação judicial (“RJ”). No Recurso Especial nº 2.163.463/SP, a Corte analisou se o tribunal arbitral poderia determinar a compensação de crédito existente antes da data do pedido de RJ, concluindo que esse tema não é arbitrável e, portanto, deveria ser analisado pelo juízo da RJ.
O caso e a decisão
O caso envolveu disputa contratual entre a empresa Metha, antiga Construtora OAS, que se encontra pela segunda vez em RJ, e a Concessionária Auto Raposo Tavares (“Cart”), responsável pela administração da rodovia de mesmo nome em São Paulo. O conflito foi submetido a procedimento arbitral, no qual, entre outras questões, a Cart requereu a compensação de créditos, pedido que foi acolhido na sentença arbitral.
Diante dessa decisão, a Metha recorreu ao Poder Judiciário buscando a anulação parcial da sentença arbitral, sob o argumento de que a compensação deferida não poderia ter sido determinada no âmbito da arbitragem. O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido, sob fundamento de que a possibilidade de compensação dos créditos constitui questão de mérito da sentença arbitral, que não pode ser revista pelo Poder Judiciário.
A Metha apresentou recurso, cujo provimento foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”), que reconheceu a arbitrabilidade da matéria e destacou que a compensação de créditos é válida, especialmente por estar prevista contratualmente, por se referir a créditos anteriores ao pedido de recuperação e por já ter se operado no momento da resilição contratual, tendo a sentença arbitral apenas natureza declaratória.
A controvérsia levada ao STJ girou em torno da possibilidade de sentença arbitral determinar a compensação de créditos envolvendo empresa em RJ. A principal questão era definir se tal decisão competiria ao tribunal arbitral ou se deveria ser analisada exclusivamente pelo juízo da RJ.
No STJ, a decisão do TJSP – que havia reconhecido a regularidade da compensação – foi reformada. O Tribunal considerou que, embora a Lei nº 11.101/2005, Lei de Recuperação Judicial e Falência, permita que empresas em recuperação participem de arbitragens, a arbitragem não pode tratar de questões que envolvam a sujeição dos créditos ao processo recuperacional. Isso ocorre porque a compensação de créditos afeta diretamente o regime de pagamento dos credores e a igualdade entre eles, princípio fundamental do processo recuperacional.
A decisão destacou que a compensação é meio de adimplemento das obrigações e, quando envolve créditos sujeitos à RJ, não pode ser considerada direito patrimonial disponível e, assim, não é arbitrável.
Conforme destacado pelo STJ, “ao envolver crédito sujeito à recuperação judicial, a compensação fica vinculada ao disposto no plano de recuperação e à competência do juízo da recuperação judicial, dada a inarbitrabilidade da matéria relacionada ao adimplemento de obrigação sujeita ao concurso”. Assim, o STJ entendeu que a arbitragem, que exige a disponibilidade dos direitos patrimoniais para ser aplicada, não poderia resolver tal questão.
Impactos e efeitos da decisão
A Lei nº 11.101/2005 estabelece quais créditos estão sujeitos à RJ, prevendo em seu artigo 49 que “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. Em regra, os credores de créditos sujeitos à RJ devem se submeter às condições do plano de recuperação aprovado, não podendo individualmente impor soluções que contrariem esse regime coletivo.
A competência para decidir a respeito da (extra)concursalidade dos créditos é exclusiva do juízo da RJ. Contudo, no caso de dívida ilíquida, a competência para dirimir o conflito é a naturalmente estabelecida pelo Código de Processo Civil ou, no caso de cláusula compromissória, do tribunal arbitral (art. 6º, §1º, da Lei nº 11.101/2005).
Nesse contexto, ponto de dúvida frequente é se um crédito existente antes da data do pedido de RJ pode ser compensado com dívidas da recuperanda e a qual juízo compete decidir a respeito da matéria. Por exemplo, imagine uma empresa em recuperação judicial que, antes do pedido de RJ, possuía crédito a receber de fornecedor, ao mesmo tempo em que tinha dívida com esse mesmo fornecedor. A questão objeto de debates é se essa dívida pode ser compensada com o crédito existente ou se o débito em desfavor da recuperanda deveria ser quitado conforme as condições estabelecidas no plano de RJ, com o pagamento integral do crédito em benefício da recuperanda. Ainda, há dúvida quanto à competência para a análise da possibilidade de compensação.
A compensação é meio de extinção de obrigações realizada quando duas partes são simultaneamente credoras e devedoras uma da outra, e pode ocorrer em diferentes modalidades, como legal (prevista no Código Civil, quando há débitos líquidos, vencidos e da mesma natureza entre as partes, operando-se de pleno direito), convencional (por acordo entre credor e devedor, sendo comum a existência de cláusula contratual prevendo a compensação) ou judicial (determinada por decisão do juízo).
Essa classificação tem impactos na discussão sobre compensação de créditos sujeitos à RJ, pois cada uma delas se operam em momentos e formas distintos.
A rigor, antes de entrar com o pedido de RJ, a empresa pode pagar qualquer crédito, o que significa que pode também quitá-lo por meio de compensação convencional, assim como é possível, em tese, que um crédito seja quitado por compensação legal de pleno direito, antes mesmo do pedido de RJ.
Na decisão em questão, uma das partes alegou justamente que, no caso, a compensação convencional havia se operado antes mesmo do ingresso com o pedido de RJ. O argumento foi acolhido pelo TJSP, que fundamentou sua decisão na existência de cláusula contratual entre as partes que previa expressamente a possibilidade de compensação. Segundo o TJSP, tratava-se de compensação voluntária (ou convencional), que não exigiria, portanto, o preenchimento dos pressupostos típicos da compensação legal, como fungibilidade, liquidez e exigibilidade. De acordo com esse entendimento, a compensação teria se operado de pleno direito no momento da resilição do contrato firmado entre as partes, sendo que a sentença arbitral posterior apenas reconheceu essa compensação já consumada, tendo, portanto, natureza meramente declaratória e eficácia retroativa (ex tunc). Assim, para o TJSP, a compensação teria se consumado antes mesmo do ajuizamento do pedido de RJ, afastando qualquer afronta à ordem recuperacional.
Embora não se tenha acesso ao processo e seus documentos (que estão sob sigilo processual), o contexto da decisão indica que o caso envolvia a existência de cláusula contratual prevendo a compensação. Na prática, sabe-se que muitos contratos, especialmente no contexto de grandes projetos, preveem a possibilidade de compensação de multas e indenizações devidas pelo contratado com a remuneração devida pelo contratante. No entanto, enquanto a remuneração geralmente constitui dívida líquida e certa, as multas e indenizações nem sempre possuem essa mesma característica, podendo depender inclusive de liquidação por meio de decisão judicial ou arbitral. Assim, há casos em que as partes estabelecem contratualmente uma compensação que não atende necessariamente aos pressupostos de fungibilidade, liquidez e exigibilidade da compensação legal.
A dúvida que existe, portanto, é se, mesmo nessa hipótese, a compensação se opera de pleno direito – como entendeu o TJSP no caso – e se seria legítima a sua declaração por juízo diverso do que conduz a RJ. Sendo a resposta positiva, em regra não haveria que se falar em crédito sujeito ao concurso de credores, pois já estaria extinto por adimplemento antes mesmo da entrada com o pedido de RJ. Pelo mesmo motivo, seria admitida a declaração pelo juízo competente para conhecer de conflitos envolvendo o negócio jurídico, já que não se trataria propriamente de (extra)concursalidade, mas sim de definição do valor do crédito controverso entre as partes.
Ocorre que, no caso, o STJ deu como “incontroversa circunstância” que o crédito detido pela Cart estaria sujeito à RJ e que, dessa forma, “a compensação fica vinculada ao disposto no plano de recuperação e à competência do juízo da recuperação judicial”. Apenas fez uma nota no sentido de que o juízo da RJ, em sua avaliação acerca da possibilidade de compensação, “deverá levar em conta o momento em que os requisitos necessários à compensação estiverem presentes, ou seja, a liquidez, o vencimento e a fungibilidade”, em uma aparente indicação de entendimento de que tais requisitos se aplicariam também à compensação convencional discutida na demanda, mas sem maior detalhamento. Afirmou ainda que “caso [o preenchimento dos requisitos] ocorra antes do pedido de recuperação judicial, a compensação se opera de forma automática”. Por outro lado, na “hipótese de os requisitos para a compensação ocorrerem apenas depois da distribuição do pedido de recuperação, não poderá a recuperanda adimplir obrigação sujeita à recuperação judicial por meio da compensação”.
Assim, o STJ parece ter perdido oportunidade de se aprofundar mais diretamente nas questões jurídicas que circundam a discussão incluindo a aplicabilidade dos requisitos da compensação legal à compensação convencional e sobre a natureza declaratória ou não da decisão que reconhece a compensação ocorrida antes do pedido de RJ.
De todo modo, a princípio, a decisão do STJ parece indicar que os tribunais arbitrais não podem decidir sobre o tema da compensação abrangendo quaisquer créditos anteriores à data do pedido de RJ – tenha a compensação ocorrido anteriormente ao pedido ou não. Qualquer discussão a respeito da compensação de tais créditos estaria restrita ao juízo da RJ, na medida em que repercutiria na definição acerca da concursalidade/extraconcursalidade do crédito. A definição sobre a competência do juízo da RJ não necessariamente acarretará a impossibilidade de compensação, mas certamente agrega complexidade na resolução de conflitos contratuais.
A ponderação que se faz nesse contexto é que a existência de diferentes foros para decidir sobre questões interligadas pode gerar incertezas e insegurança jurídica. Se o tribunal arbitral discute a relação contratual subjacente e o mérito da existência dos créditos e débitos recíprocos, mas o juízo da RJ decide sobre a possibilidade de compensação desses valores, pode haver descompasso na análise do caso. Esse problema se agrava à luz da relevância da interpretação de cláusulas contratuais que determinam a compensação e da análise dos fatos sob o aspecto temporal, pois, como se comentou, a determinação de se um crédito já foi extinto por compensação legal ou convencional antes do pedido de RJ pode influenciar diretamente na forma como ele será tratado no processo recuperacional.
Em todo caso, a decisão acende um alerta para credores em negociação com empresas em dificuldades financeiras e que podem acabar em RJ. Nesses casos, ainda que haja instrumento contratual prevendo a compensação de créditos e débitos recíprocos, pode ser necessário pensar em alternativas para assegurar que a compensação seja eficaz e não dependa de declaração por órgão jurisdicional. Caso contrário, se a empresa em questão entrar em RJ, o credor pode se ver na situação de ser obrigado a pagar integralmente os valores que deve à recuperanda (sob pena de incidência dos consectários da mora) e, simultaneamente, terá o pagamento de seu crédito sujeito às condições do plano de RJ, o que muitas vezes significa a aplicação de descontos significativos ao valor.
Diante desse cenário, torna-se ainda mais importante refletir, com o devido suporte jurídico, sobre a forma como são redigidas cláusulas de compensação e outras estratégias que podem ser adotadas para mitigação de riscos, tanto pelo credor, quanto pela empresa que está em vias de uma RJ. Nossa equipe acompanha de perto os desdobramentos jurídicos envolvendo arbitragem, contratos empresariais e insolvência, e está disponível para auxiliar empresas de ambos os lados que queiram avaliar riscos, repensar seus instrumentos contratuais ou estratégias de negociação à luz dessas discussões.
Fernanda Figueiredo
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Maria Eduarda Boson
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados