Distribuição desproporcional de lucros em estruturas societárias familiares
Paulo Vítor Ângelo e Victor Rocha
Nas sociedades empresárias de pequeno e médio porte, é comum que um ou outro sócio assuma papel de maior protagonismo na condução cotidiana dos negócios ou que algum deles participe mais ativamente de uma determinada transação, seja captando o negócio, seja estando à frente dos serviços prestados. Nesse contexto, a distribuição desproporcional de lucros – prática juridicamente admitida no âmbito das sociedades limitadas – é recorrentemente utilizada como forma de compensar a dedicação daqueles que atuam mais ativamente na atividade empresarial, permitindo que recebam parcela dos lucros superior àquela que, em regra, corresponderia aos seus percentuais de participação.
Recentemente, contudo, essa prática passou a ser incorporada também a estruturas de planejamento patrimonial e sucessório, notadamente nas chamadas sociedades familiares, em que o capital social está distribuído entre pais, filhos e outros parentes próximos. Em tais situações, a distribuição desproporcional de lucros tem sido comumente empregada como controverso expediente para viabilizar transferências de recursos de ascendentes para descendentes.
Embora se trate de prática legitimada pelo Código Civil (1), a distribuição desproporcional de lucros tem despertado a atenção das autoridades fiscais. O receio, do ponto de vista do Fisco, é que tais operações ocultem atos de mera liberalidade desprovidos de propósito negocial legítimo, podendo, por isso, serem requalificadas como doações simuladas, sujeitas à incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (“ITCMD”).
O debate ganhou novo fôlego com recente decisão da Quarta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJSP”) (2), que reconheceu a legitimidade da incidência do ITCMD sobre distribuição desproporcional de lucros realizada no contexto de sociedade limitada do setor de construção civil/incorporação imobiliária, cujos sócios eram todos membros de uma mesma família. Na ocasião, a Corte entendeu que, diante da ausência de elementos materiais que demonstrassem motivação econômica legítima, a operação deveria ser equiparada à doação, ainda que houvesse cláusula contratual autorizando a desproporcionalidade da distribuição.
A estrutura societária era simples: os pais detinham conjuntamente 98% do capital social, enquanto os dois filhos possuíam 1% cada. No ano de 2017, no entanto, foi realizada distribuição de lucros acumulados que direcionou 90% do montante para os filhos e apenas 10% para os pais. Pouco tempo depois, foi formalizada a doação da totalidade das quotas dos pais aos filhos, com reserva de usufruto vitalício sobre os direitos econômicos e políticos conferidos pelas participações.
Diante desses fatos, a Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (“SEFAZ-SP”) lavrou auto de infração manifestando que a distribuição de lucros teria sido utilizada como meio indireto para a transmissão gratuita de patrimônio dos pais aos filhos – sujeita, portanto, à incidência do ITCMD.
A sociedade e os sócios defenderam a legalidade da operação, destacando a previsão contratual da desproporcionalidade, a participação ativa dos filhos na empresa e os precedentes favoráveis à liberdade de planejamento tributário, como o julgamento da ADI nº 2.446 pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) (3).
Contudo, a Quarta Câmara de Direito Público do TJSP reconheceu a legitimidade da autuação fiscal e afirmou que a mera previsão contratual não seria suficiente para legitimar a distribuição desproporcional dos lucros, tornando indispensável a demonstração objetiva de fundamentos econômicos concretos que justificassem a operação. No caso específico, o Tribunal entendeu que os contribuintes não teriam demonstrado, de forma consistente, a efetiva atuação dos filhos na condução da sociedade – seja como sócios participantes da gestão, seja na qualidade de administradores –, o que fragilizou a tese de que a distribuição visava remunerar sua dedicação à empresa.
O ponto central da decisão do TJSP – especialmente relevante no contexto das estruturas societárias familiares – é a exigência de propósito negocial claro, concreto e devidamente documentado para viabilizar as distribuições desproporcionais de lucros.
Ainda que juridicamente válida, a distribuição desproporcional não pode ser utilizada como substituto informal da doação, sob pena de ser desconsiderada pela autoridade fiscal (4). Assim, na ausência de demonstração de causa negocial legítima – como a efetiva atuação ou influência do sócio beneficiado, a prestação de serviços relevantes à sociedade ou a assunção de riscos empresariais –, atestada por meio de documentos, atas, e-mails, pareceres técnicos e/ou registros contábeis, a operação poderá ser interpretada como ato de mera liberalidade, isto é, transferência gratuita sem finalidade empresarial, sujeita à incidência do ITCMD.
Para que a prática seja validada do ponto de vista fiscal, é indispensável a demonstração concreta de propósito negocial legítimo, especialmente quando a distribuição favorecer sócios de menor percentual de participação no capital social. Nesse contexto, estruturas societárias familiares que busquem conciliar eficiência sucessória e segurança jurídica devem investir na formalização das razões que justifiquem a desproporcionalidade, amparando-as em critérios objetivos e verificáveis.
A decisão do TJSP não aparenta ser ponto fora da curva, mas o reflexo de tendência de maior rigor das autoridades fiscais e do Poder Judiciário diante de estruturas societárias familiares que envolvam transferências patrimoniais relevantes. Em cenário marcado pelos debates em torno da reforma tributária e pela (sempre) crescente demanda arrecadatória dos entes federativos, as distribuições desproporcionais de lucros inseridas em contextos sucessórios estarão cada vez mais sujeitas ao crivo da fiscalização, tornando recomendável a adoção de práticas mais transparentes, documentadas e tecnicamente fundamentadas, capazes de assegurar a integridade do planejamento patrimonial e sucessório e de mitigar riscos tributários significativos.
Cabe lembrar que a Câmara de Deputados, na discussão do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, relativo ao segundo projeto de lei referente à Reforma Tributária, chegou a incluir expressamente a incidência do ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros em uma das versões do projeto, o que, no entanto, não foi mantido na versão enviada ao Senado Federal. A discussão, entretanto, permanece.
Para mais informações sobre o assunto, consulte a equipe de consultoria societária e tributária do VLF Advogados.
Paulo Vítor Ângelo
Coordenador da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Victor Rocha
Advogado da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Código Civil. Art. 1.007. “Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas.”
(2) Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Quarta Câmara de Direito Público. Apelação Cível nº 1089011-58.2023.8.26.0053.
(3) Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.446/Distrito Federal.
(4) CTN. Art. 116, Parágrafo único. “A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”