Programa de partnership e mecanismos de gestão do quadro de sócios
Pedro Ernesto Rocha e Isabelle Félix
Imagine que uma pessoa é a única sócia e fundadora da Alfa Ltda e os serviços prestados pela empresa dependem da capacidade intelectual da fundadora e dos profissionais que são seus colaboradores. A fundadora, visando a incentivar que colaboradores estratégicos permaneçam na Alfa Ltda., propõe a tais colaboradores que ingressem como sócios para que compartilhem diretamente os resultados da operação.
Essa realidade é frequente em inúmeros negócios. E foi exatamente a partir dela que se desenvolveram os comumente chamados “programas de partnership”. Do ponto de vista jurídico, os programas de partnership são estruturados por meio de mecanismos societários que, por um lado, permitem o ingresso de colaboradores estratégicos na estrutura societária visando a partilhar com eles os resultados e a incentivar o empenho empresarial, e, por outro, assegurem aos fundadores o controle do negócio, tanto no que diz respeito à gestão da operação da sociedade quanto no que diz respeito à gestão do quadro de sócios.
A lógica desse arranjo está no fato de que se trata de sociedade fundada na contribuição efetiva e pessoal que o sócio pode dar para o negócio. Portanto, se um sócio deixa de contribuir para o desenvolvimento do negócio, é necessário haver consequência para tal fato.
Essa consequência usualmente aparece como cláusula de opção de compra, por meio da qual a sociedade ou os fundadores têm a opção de comprar a participação do sócio que deixou de contribuir com o negócio, ou aparece como reconhecimento prévio de motivo que enseja a exclusão do sócio respectivo nos termos do artigo 1.085 da Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”).
Em caso analisado pela 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Tribunal de Justiça de São Paulo (1), um colaborador estratégico se tornou sócio em sociedade com estrutura de partnership e posteriormente foi excluído.
A estrutura do programa de partnership previa que, na ocorrência de determinados eventos que se caracterizassem como faltas de um sócio, haveria a possibilidade de exclusão de tal sócio (procedimento de exclusão de sócios tipificado pelo Código Civil) e haveria a opção da sociedade de adquirir as quotas de tal sócio (opção de compra), sendo que em ambos os casos seria aplicável a regra de valoração das quotas prevista em acordo de sócios.
A referida regra de valoração estabelecia – dentre outras variáveis – que haveria a aplicação de fator redutor de 100% em caso de exclusão de sócio e de 20% em caso de exercício de opção de compra.
A alternativa escolhida foi a exclusão de sócios, o que acarretou a aplicação do redutor de 100% na valoração das quotas titularizadas pelo excluído. O sócio excluído ingressou em juízo requerendo que o pagamento de suas quotas se desse com base em apuração de haveres (e não com base no valor fixado no acordo de sócios).
A sentença construiu raciocínio no sentido de que a cláusula do acordo de sócios que estabelece desconto de 100% na valoração das quotas titularizadas pelo excluído representa renúncia ao direito à apuração de haveres, e, nesse sentido, entendeu pela sua ilicitude (2).
O principal fundamento apresentado foi: o direito à participação nos haveres é inerente à condição de sócio, nos termos do artigo 1.008 do Código Civil: “É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas”. Por isso, não poderia ser renunciado/excluído (3).
A matéria em discussão é rica. Há muitos aspectos a serem considerados sob as óticas societária e civilista (4), mas este artigo destaca apenas um deles (5): a interpretação do negócio jurídico à luz do artigo 113, §1º, incisos II e V do Código Civil.
Os referidos dispositivos legais determinam que os negócios jurídicos devem ser interpretados em correspondência com os usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio (inciso II do §1º do artigo 113) e essa interpretação deverá considerar a racionalidade econômica das partes no negócio (inciso V do §1º do artigo 113) (6).
Como mencionado no princípio deste texto, os programas de partnertship se tornaram extremamente comuns no mercado. Eles são verdadeiros métodos de desenvolvimento e aprimoramento empresarial que viabilizam, tanto para os fundadores de um negócio quanto para as pessoas que almejam atuar no ramo em questão, caminho para o crescimento empresarial/pessoal-profissional economicamente eficiente (para a Alfa Ltda., no caso do nosso exemplo, e para o colaborador/potencial sócio).
Esse caminho é eficiente porque não se atém às formalidades e aos custos inerentes às relações empregatícias e até mesmo às relações de prestação de serviços, e é eficiente porque tem como efeitos esperados o maior engajamento do colaborador/potencial sócio nos propósitos empresariais e consequentemente o aumento dos lucros e a sua partilha entre os sócios (os fundadores e os demais).
Em outras palavras: além de ser comum a estruturação de negócios em termos iguais ou semelhantes àqueles do caso discutido no processo, essa estruturação faz sentido econômico para a sociedade/empresa, porque ela engaja novos sócios em seu projeto e potencializa sua capacidade lucrativa; e faz sentido para o colaborador/potencial sócio, que passa a ter acesso a recebíveis (lucros) possivelmente superiores à eventual remuneração que conseguiria receber atuando como empregado ou como prestador de serviço no mesmo mercado.
Por isso, pode-se afirmar que os programas de partnership são comuns e legais, correspondem a práticas consolidadas em alguns mercados e parecem justificar a estruturação de cláusulas de gestão de quadro societário assemelhadas às cláusulas analisadas na sentença.
A equipe do VLF advogados está pronta para auxiliá-lo a desenvolver seu programa.
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Isabelle Félix
Advogada da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem. Processo: 1033074-82.2024.8.26.0100.
(2) “Independentemente ou não de haver justa causa para a exclusão, põe-se, em primeiro lugar, a seguinte indagação: pode o sócio de uma sociedade limitada renunciar previamente o direito a apuração de haveres em determinadas circunstâncias?
A resposta positiva implicaria investigação sobre as causas da exclusão; conduto, este Juízo entende que a resposta é negativa, a afastar, portanto, qualquer necessidade de investigação fática, prejudicando qualquer prova pretendida. É dizer: em termos exclusivamente jurídicos, entende-se que é ilícito o arranjo contratual em sociedade limitada que implique, concretamente, a possibilidade renúncia ao direito de apuração de haveres do sócio, qualquer que seja o motivo de sua retirada ou exclusão.”
(3) Em segunda instância, o processo foi decidido sem julgamento de mérito, em razão de ter-se entendido que a competência para decidir o tema era do tribunal arbitral eleito, em razão da cláusula compromissória prevista no acordo de sócios.
(4) Pode-se discutir, por exemplo: o fato de que o artigo 1.008 não trata de haveres, mas, sim, trata de lucros, e haveres e lucros são coisas distintas; o caráter potestativo da exclusão de sócios e/ou de uma cláusula de opção de compra; a natureza de cláusula penal de eventuais descontos aplicáveis sobre os haveres em caso de exclusão ou sobre o preço em caso de exercício de opção de compra; o exagero/a proporcionalidade ou não dos descontos aplicáveis na valoração das quotas; o caráter de adesão ou não dos contratos societários etc. Para aprofundamentos, recomenda-se a leitura de: FERREIRA, Mariana Martins-Costa. Buy or Sell e Opções de Compra e Venda para Resolução de Impasse Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2018; e SPINELLI, Luis Felipe. A exclusão de sócio por falta grave na sociedade limitada: fundamentos, pressupostos e consequências. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2132/tde-21082017-141154/publico/Luis_Felipe_Spinelli_A_exclusao_de_socio_por_falta_grave_na_sociedade_limitada_INTEGRAL.pdf. Acesso em: 25 abr. 2025.
(5) Esses aspectos abordados neste artigo não são tratados na decisão judicial.
(6) No âmbito de programa de partnership é compreensível e costumeiro que existam mecanismos para que os fundadores controlem a operação do negócio e gerenciem o quadro de sócios, afinal, o negócio só existe porque os fundadores um dia o iniciaram (e, portanto, para muitos fundadores essa estruturação só se justifica se o controle do negócio for por eles mantido) e no quadro de sócios só devem permanecer as pessoas que contribuem para o desenvolvimento do negócio, não havendo espaço para “sócios investidores”.